Deixou a alma debaixo do tapete da entrada já gasto que tinha escrito “Bem-vindo” em seis – seis! – línguas diferentes. Varreu-a por descuido, esqueceu-se de para onde a tinha empurrado e quando se lembrou decidiu que aquele era um bom sítio para a deixar.

Antes debaixo daquele que debaixo de um das centenas de tapetes que, em feitio de mosaico, cobriam o corredor, a sala fechada das visitas e da cristaleira, a sala pequenina da lareira onde se torrava pão e se aqueciam as mãos ao chegar – essa, sim tinha escrito “Bem-vindo” numa linguagem universal – e a sala das malhas e bordados da mãe.

A mãe via muito pouco e demorava uma tarde para conseguir enfiar a linha no buraco da agulha. Às vezes quando finalmente conseguia já tinha escurecido e tinha de a deixar de lado para o dia seguinte.

Deixou a alma abandonada à mercê das pisadelas das visitas que tardavam e para quem sempre estavam reservados biscoitos já duros numa lata pintada à mão com cavalos, carruagens e princesas desdenhosas.

Talvez, saindo sem ela, o mundo lhe parecesse mais leve, as distracções e embaraços o fizessem rir. Talvez, com ela assim escondida e protegida, tivesse um dia vontade de destapar o carro, de o tirar da garagem e ir devagarinho passear a mãe à marginal ao ritmo dos domingos. E quem sabe, entre os risos das crianças dos outros, encontrasse coragem para procurar a sua, para rematar o pagamento das bicas e das queijadas com uma piada à menina da pastelaria que até tinha uns olhos bem bonitos? Talvez a pudesse deixar – a alma – bem escondida o resto da vida para não estorvar e escrever no testamento – não disso não se podia esquecer – que a colocassem no caixão quando partisse, amachucada entre o lenço de seda e o cravo branco na lapela.

O tapete da entrada. Era um bom sítio para a deixar, repetiu antes de sair.

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